O mito do ciclismo fala do Tour, do regresso, do colega/rival Contador, da experiência do Giro e da forma como os outros ciclistas o olham
Lance Armstrong considera que atingiu os seus objectivos e que provou que o seu regresso não foi um fracasso. Na escala dos grandes hotéis do Mónaco, o quarto parece modesto, muito modesto mesmo. O séptuplo vencedor do Tour submeteu-se ao mesmo tratamento que os seus companheiros de equipa da Astana. O mesmo pardieiro anónimo ao fundo de um grupo de corredores, onde impera a cafeteira, o boné Mellow Johnny?s (nome da sua loja de bicicletas em Austin), a consola do iPod e a "máquina para twittar" que vão com ele para todo o lado. O seu corpo ressequido ("comecei a maioria dos meus Tours de France a pesar entre 74 kg e 74,5 kg. Agora tenho menos de 73", diz) basta para contar as horas de treino e de corrida. Com 37 anos, Lance Armstrong está pronto a partir para a sua 12.a Volta a França.
Que sentido atribui ao seu regresso?
Não o faço por dinheiro, nem para ganhar outro Tour nem para me tornar célebre? Já tenho isso tudo. Trata-se de ajudar a minha fundação [Livestrong, que apoia a luta contra o cancro] e da minha vontade de correr. Quero correr. Não consigo dizer isso suficientemente alto! Corro a Volta a França gratuitamente, por nada. As minhas intenções são puras, acredite.
Já passou por momentos em que se arrependeu de ter tomado essa decisão?
Sim. Depois da minha queda [na Volta a Castela e Leão, no fim de Março, partiu a clavícula direita]. Também foi uma nova experiência para mim, uma queda dessa magnitude. Nesse momento perguntei a mim próprio se tinha tomado a decisão certa. Mas ao fim de duas ou três semana voltei ao normal.
Normal?
É que nunca tinha tido grandes quedas. Nunca tinha ido para o hospital, nunca tinha sido operado, nunca tinha partido nada. Foi um choque...
Actualmente, sentado na bicicleta, acontece-lhe pensar nisso?
Não. Pouco tempo depois, sim. Mas o Giro fez-me bem. Foi uma corrida nervosa; foi preciso bater-me todos os dias para manter a minha posição. Antes, digamos que há cinco anos, eu era o último a travar. E no começo desta temporada era o primeiro. Foi um problema. Agora sou? um dos últimos. O Giro vacinou-me.
Que verificou desde o seu regresso? É mais fácil ou mais difícil do que imaginava?
Hmmmm? É certamente mais difícil. Veremos no Tour, mas o Giro [terminou-o em 12.o lugar] foi difícil. Provavelmente porque houve a queda e eu só tinha tido três semanas de treino antes disso. É difícil estar nas melhores condições nessa situação, mas fiz progressos durante o Giro e isso é um bom sinal. Em todo o caso, é decerto mais difícil do que imaginava e tem mais a ver com o tempo que passei fora dos circuitos (três anos e meio) que com a minha idade (37 anos). Tive outro tipo de vida durante três anos e meio. A idade não é assim tão importante. No ano que vem estarei mais forte que este ano.
Depois de quatro anos volta a descobrir o Tour. Mudou muito?
Não. Continua a ser a jóia da coroa, o acontecimento mais importante do ciclismo. E, com todo o respeito, o Tour é provavelmente grande de mais para o ciclismo. O Tour está aqui [mostra a mão direita] e os outros eventos estão bem abaixo [baixa a mão violentamente]. Este tipo de diferença não é muito saudável. Mas, enfim, este ano o Tour vai ser formidável, interessante do princípio ao fim.
O que é que o entusiasma mais no Tour?
Há muitas chegadas interessantes. Mesmo o contra-relógio por equipas [em Montpellier, a 7 de Julho] é emocionante. E depois há o Ventoux [a 25]?
Fez o reconhecimento das etapas alpinas, dos circuitos cronometrados (Mónaco, Montpellier e Annecy), mas não do Ventoux. Porquê?
Conheço-o quanto baste.
Qual a sua fasquia mais alta em termos de resultados neste Tour?
Isso depende da equipa. Se o Alberto [Contador] for super, corro por ele. A minha posição na classificação não é importante. Estou em boa condição física, mas é preciso respeitar a equipa. Em termos pessoais, ficaria contente se ficasse nos primeiros 3 ou 5 lugares. Não é forçoso ser eu a ganhar. Já provei que era um grande corredor. Este ano também. Não é assim tão fácil fazer o que fiz este ano. Sabe, faço-o por prazer. Não tenho mais nada a provar. Se um dia estiver farto, mesmo durante o Tour, volto para casa sem qualquer problema.
Considera que já ganhou a aposta?
Na perspectiva da fundação, sim, já ganhei. É uma vitória. Para além de todas as expectativas. Para a minha credibilidade enquanto corredor, mesmo que não ganhe o Tour, nem o Giro... sim, penso que também é uma vitória.
Qual foi a sensação quando voltou a erguer os braços em Nevada City, há alguns dias?
Tinha feito essa corrida em 1990 e acabei em 2.o lugar. Dezanove anos depois, ganhei-a. Sou como Jeannie Longo [lenda do ciclismo feminino]... E posso garantir-lhe que em 2009 estava em melhor forma que em 1990. Muito melhor. E depois foi no Dia do Pai, na presença dos meus filhos?
O que pode perder neste Tour?
Posso cair, mas isso é outra coisa. O importante é a dinâmica entre mim e Alberto [Contador]. Se ele for o melhor na corrida e eu não o ajudar, vou perder muito. Quando o Levi [Leipheimer, seu companheiro de equipa na Astana] estava na mó de cima, ajudei-o em todas as corridas, tanto no Giro como na volta à Califórnia. Eu sou como o Levi, como o Rast, como o Zubeldia; tenho de dar ouvidos ao Johan [Bruyneel, o chefe da equipa Astana]. As pessoas compreendem que os corredores devem acatar as ordens do seu director desportivo. Se o meu desempenho não estiver ao nível do que esperam de mim, isso não será um fracasso. Já fiz tudo aquilo que queria fazer.
No Giro, alcançou o objectivo pretendido?
Foi difícil. Em certos aspectos, o Giro é mais difícil que o Tour. A Itália não é um país plano. Dê uma espreitadela ao mapa ou ao Google Earth e perceberá o que quero dizer. A corrida foi diferente das anteriores. O Giro é famoso pelo seu ritmo "piano, piano". Mas este ano, a cada dia, ao baixar da bandeira, tinha-se direito ao primeiro ataque. Todos os dias! Batemos o recorde da velocidade. Mais de 40 km/h num país como este, com todas aquelas montanhas e colinas. Foi duro.
Qual foi o corredor que mais o impressionou na Volta à Itália?
Denis Menchov! Sem qualquer dúvida. Um desempenho total, o melhor nas provas cronometradas. Numa chegada ao cume da montanha, já não me lembro de qual (16.a etapa, Pergola-Monte Petrano), ele chegou a ir buscar a bonificação à frente do Danilo Di Luca. A verdadeira classe. Menchov era bom, tanto mais que a equipa dele [Rabobank] não o era propriamente. Ele foi inteligente.
O seu outro objectivo era perder peso. Perdeu o suficiente?
Sim, mais que o suficiente. Comecei a maioria dos meus Tours a pesar entre 74kg e 74,5 kg. Agora peso menos de 73. Estou muito menos pesado que dantes graças ao Giro.
Quanto à atitude dos outros corredores consigo, continuam a considerá-lo o chefe?
No Giro olhavam para mim como se fosse o patrão. Mas outro tipo de patrão. No passado, diziam uns aos outros: "Ele é o patrão. Não lhe fales." No Giro houve a história de Milão em que todos diziam que não podíamos correr [por motivos de segurança, os corredores pediram a neutralização de uma parte da corrida que se disputava num circuito urbano]. Aí os outros corredores vieram ter comigo. E durante toda a corrida penso que ninguém teve qualquer dificuldade em falar comigo. As relações são mais abertas que anteriormente. Mas não se podem comparar com o Tour. No Tour temos de ganhar. Antigamente, costumava dizer aos tipos da minha equipa: "Atenção, durante um mês deixamos de ter amigos." Estávamos concentrados na corrida. Tinha chegado o momento de sermos sérios. Em França não era uma atitude muito popular. Um corredor que seja muito sério, que só pense em fazer o seu trabalho, como um robô, e que ganhe, não é romântico, não tem panache. Agora compreendo. Mas no Giro não senti nenhuma pressão deste tipo.
Os norte-americanos pressionam. Não aceitam senão a vitória. Mas em França também apreciam o 2.o lugar?
Já debati essa questão com Cédric Vasseur, que foi meu companheiro de equipa já há muito tempo [temporada de 2000-2001]. Perguntei-lhe qual era o problema que os franceses tinham comigo. E ele disse-me: "Sabes, Lance, não gostamos de vencedores." Eu respondi-lhe: "Mas de que estás tu a falar?" Ele respondeu: "Gostamos dos que ficam em 2.o ou 3.o lugar com boas histórias para contar e rostos expressivos. "Para mim, o máximo do romantismo é trabalhar mais que qualquer um, entregar-se a fundo na corrida, mais que qualquer um, ser mais sério que qualquer um e... ganhar. Eu pensava que essa maneira de ver as coisas era a mais popular. Mas depois percebi que não era verdade. Mesmo assim, no sábado, quando chegar a minha vez no cronómetro, vou partir a cem por cento. Não consigo conceber que essa atitude seja interpretada negativamente.
Os outros corredores respeitam-no tanto como dantes?
Depende do que se entende por respeito. Penso que eles respeitam os meus sete Tours. Mas, se perguntar quem vai vencer aos 200 tipos que estão na linha da meta, só 30 dirão o meu nome. Há quatro anos teriam sido 150. Mas quando estou num grupo, claro que há sempre respeito.
Dantes dedicava mais tempo ao ciclismo. Actualmente, não lhe parece que está a fazer coisas de mais?
Não é fácil responder-lhe. Há a fundação, a família, o negócio, as viagens. Mesmo o Levi Leipheimer não consegue acreditar que faço isso tudo. Estou sempre em movimento. Mas preciso de movimento na minha vida. A ideia de me sentar num sítio durante muito tempo não tem a ver comigo.
Como decorreram os treinos em Aspen?
Bastante bem. Os desfiladeiros são altos, mas não há subidas tão íngremes como nos Alpes. Já não há desfiladeiros do tipo do Grande São Bernardo, longos e regulares. Não é necessariamente o melhor local para treinar, mas fiquei cansado depois do Giro. Deu-se o nascimento do meu filho Max e os meus outros filhos estavam presentes. Foi um mês agradável. O Max já dá noites boas e é sempre a mãe que se levanta quando ele chora durante a noite. E diz-me: "Não, tu estás a treinar para o Tour?"
O contra-relógio do Mónaco poderá dar origem a uma hierarquia no seio da equipa Astana?
Claro que sim. Mesmo que não seja importante em termos de diferença, uns cinco ou dez segundos, o público, os jornalistas e os mecânicos vão logo dizer: "Ah, fulano vai à frente."
Bruyneel nomeou Contador chefe da equipa. Mas é difícil acreditar nele; pensa-se que seja uma precaução?
Ele fez isso no site da Astana, na internet, não foi? Todos me fazem essa pergunta. Pedi explicações a Johan, porque se houver um líder é melhor que todos o saibam. É melhor que sejam abertos e francos. Dizem que há um chefe; é um facto consumado e todos trabalham para ele. Mas esse debate não teve lugar? A maioria das pessoas considera Alberto o favorito e eu penso que ele é o melhor corredor numa prova por etapas. Mas não podemos esquecer Leipheimer.
Compreende que Contador se preocupe a respeito da sua verdadeira situação no seio da equipa?
Não há razão para isso. Poderia ficar inquieto se eu pertencesse à Saxo Bank ou à Columbia, mas eu estou aqui. Seja chefe seja simples membro da equipa, darei o meu máximo. Farei o meu trabalho como me compete. Para ele, o verdadeiro problema seria eu pertencer a outra equipa. Para ele, esta é a melhor situação.
E para si?
Para mim também.
Voltou a encontrar Contador quando fazia o reconhecimento do percurso de contra-relógio por equipas de Montpellier, na manhã de quarta-feira. O que lhe disse?
Não lhe disse grande coisa. Como sabe, há a barreira da língua. Mas as nossas relações não são tensas. Ao jantar não há espanhóis de um lado e americanos do outro. Ficamos todos juntos, misturados. Não falamos um com o outro todos os dias como faço com Leipheimer ou como fazia com George [Hincapie, actualmente no Columbia], mais isso era de esperar.
O Tour começa com um contra-relógio. Nesse aspecto, ficámos bastante desapontados com o seu desempenho este ano?
Na Califórnia, sim. No Giro, a etapa cronometrada das Cinque Terre foi excepcional por ser tão acidentada e em Roma, na última etapa, já não havia nada em jogo. Mas tem razão, este ano não fui bom ao cronómetro.
Vai fazer algumas alterações?
Volto à minha antiga posição, a de 2005. Vai ser tudo igual.
Fez algum treino específico?
Não; treinei mais em montanha. Este ano, o Tour não é muito bom para os contra-relógios. Só há 55 km?
E também vai mudar de bicicleta?
Sim, tenho uma nova, totalmente diferente. Corri com ela em Aspen. É uma bicicleta rápida, muito rápida. Penso que é a mais rápida do mundo. O Alberto tem uma igual e usou-a no campeonato de Espanha.
Christian Prudhomme, director do Tour, disse-nos que quando fez o reconhecimento do percurso do Mónaco, bem antes de o Lance ter anunciado o regresso, disse a si próprio que parecia um percurso feito para si. Está de acordo?
Em 2005, nesse circuito, eu teria destruído a corrida. Teria feito enormes diferenças. É um bom percurso para mim, duro e técnico. Eu vivi aqui. Conheço todas as estradas como a palma da minha mão. Mas já não estamos em 2005?
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